ANZY-LE-DUC
De março a maio de 2005, foram realizados seis encontros entre uma francesa apaixonada pela arte românica, Anne Louyot, e um grupo de artistas brasileiros interessados pela arte medieval europeia, reunidos no atelier Piratininga, em São Paulo.
Os encontros tiveram os seguintes temas:
- a igreja românica, signo da paisagem francesa;
- as formas das igrejas românicas;
- a aventura do pilar;
- o desafio da abóbada;
- a escultura românica entre o sagrado e a transgressão;
- a explosão das cores nas igrejas românicas.
Duas eram as ambições desses encontros: estudar, juntos, a situação atual dos conhecimentos a respeito da arte românica francesa; partilhar um modo de olhar, de apreender a arte em geral e, em particular, a arte românica.
A arte românica, que, desde o século XIX, é objeto de apaixonada redescoberta por arqueólogos e historiadores de arte, ainda tem muito a nos trazer, por sua inventividade técnica, sua relação com o meio, pela integração entre as diferentes expressões artísticas, a riqueza e a aparente permanência das imagens que chegaram até nós.
A diversidade das técnicas empregadas mostra, ao mesmo tempo, a dificuldade do contexto (esquecimento dos antigos procedimentos, mão de obra rarefeita) e uma grande capacidade de adaptação: frente ao mesmo problema, as soluções variam consideravelmente de uma região para outra. Entre antiga herança paulatinamente redescoberta e novas invenções, a arte românica é testemunha do renascimento tecnológico do Ocidente.
A intimidade com o meio a distingue da arte romana e de seus herdeiros, como a arte carolíngia no Ocidente, arte imperial que impõe uma unidade de formas em toda a extensão do Império. As igrejas românicas, centros de mosteiros ou paróquias no contexto de uma retração feudal, estão ligadas ao seu contexto regional pelos materiais, formas, técnicas, escolha dos locais e mão-de-obra. Esta retração não impediu a criação de correntes de intercâmbio que atravessaram a Europa. A arte românica continua, entretanto, habitada por um “espírito do lugar” que ainda hoje é tema sobre o qual se pode refletir.
A coerência entre as diferentes artes , ainda modestamente nomeadas “mecânicas”, cortadores de pedra, talhadores, pedreiros, carpinteiros, escultores, pintores, vigorosamente reunidas em torno da arquitetura, possibilitou a criação de obras de grande consistência física e formal.
Enfim, as imagens românicas, frequentemente enigmáticas, combinam várias fontes iconográficas, em uma mensagem à qual só temos, hoje, um acesso parcial, tocam-nos de maneira obscura, independentemente de nossa cultura ou crença, porque tais imagens exigem mais do que um olhar, exigem uma profunda adesão.
Nossa segunda preocupação era precisamente a de pensarmos, juntos, sobre o olhar. O que significa olhar uma obra de arte? A invasão do campo do olhar por imagens “vazias”, munidas de mensagens efêmeras, ameaça simultaneamente a capacidade de apreensão das obras pelo público e o estatuto da obra de arte. A arte contemporânea, que se alimenta dos fluxos de imagens e serve-se de técnicas contemporâneas que concorrem para sua multiplicação, parece contaminada por seu acelerado ritmo de obsolescência. As obras antigas, por sua vez, estão reunidas e cenografadas em museus e galerias que atravessamos rapidamente; são filmadas, fotografadas e comentadas mais do que propriamente olhadas. Onde está o olhar que se prolonga ? O olhar é tão importante para o artista quanto para seu público; faz viver a obra no tempo e no imaginário do outro; cria o local da contemplação no espaço íntimo daquele que olha.
Que é a imagem? Ela remete a quê? O artista faz surgir a partir de seu corpo e de seu espírito, torna visíveis signos que atravessam a densidade dos sentidos depositados pela cultura e história. É uma combinação sutil ou radicalmente nova que atinge de maneira diferente a consciência de cada um que a olha. Frente à obra, qual a responsabilidade de quem olha? Compreendê-la? Pela carne, espírito, intelecto? Fazê-la sua? Individualmente, coletivamente?
Diante dessas questões, decidimos olhar juntos, a partir das diferentes sensibilidades, pontos de vista e culturas, as obras dos artistas românicos. Olhar, olhar verdadeiramente, com paciência e atenção, com a consciência de tudo aquilo que afasta o olhar de hoje do olhar da Idade Média; e também com a esperança de preencher um pouco esse fosso, pelo estudo e contemplação; na busca, enfim, de ver emergir um olhar interior, que “prolonga” o olhar dirigido ao mundo.
Queríamos também que esses encontros construíssem pontes: entre brasileiros e franceses; entre a arte românica, criação da Europa medieval, e São Paulo, uma principais megalópoles do século XXI e, finalmente, entre linguagem e imagem.
Exposição “A arte românica vista do Brasil” em Anzy le Duc
Uma apresentação dos trabalhos realizados pelos artistas do atelier Piratininga, em torno desse percurso românico, desse olhar românico, encerrou o ciclo dos encontros. A qualidade dos trabalhos, a surpreendente presença que conferiam à arte românica no meio de uma cidade de urbanismo caótico como São Paulo, levaram-nos a propor sua exposição na França, em uma igreja românica, em uma das mais belas igrejas românicas da Borgonha: a igreja do mosteiro de Anzy le Duc.
A prefeitura e a paróquia de Anzy le Duc acolheram com entusiasmo esse projeto, como uma extensão das manifestações organizadas na Borgonha no âmbito do Ano do Brasil na França, Brasil-Brasis, em 2005. As obras encontraram seu lugar na igreja românica com toda naturalidade: o calcário dourado da região do Brionnais acolheu sem reticências as gravuras, caligrafias, fotografias realizadas em São Paulo em harmonia com a arte românica. As veias do reboco dos muros uniram-se àquelas das gravuras, a luz das janelas deu vida às fotografias, os pilares acolheram o papéis de seda que traziam neles a marca das pedras brasileiras.
A exposição aconteceu de 29 de julho a 25 de agosto de 2006 e permitiu aprofundar o diálogo iniciado em São Paulo entre artistas brasileiros que estavam à procura de uma memória das formas, e uma arte milenar com o poder de instigar o olhar e dar um novo fôlego à criação contemporânea.
O objetivo deste trabalho é reconstituir essa experiência, apresentando ao mesmo tempo o conteúdo dos encontros sobre arte românica, centrados sobre a igreja românica de Anzy Le Duc, e as obras realizadas pelos artistas Ana Calzavara, Ernesto Bonato, Florence Grundeler, Kika Lévy, Margot Delgado, Maria Villares e Marisa Fava.
A igreja da Trindade de Anzy le Duc, pequena cidade do sul da Borgonha próxima a Paray-le-Monial, é um dos mais interessantes edifícios românicos da Borgonha, pela arquitetura e decoração esculpida. A cidade de Anzy le Duc, que se constituiu, na Idade Média, em torno do mosteiro cujo centro era a igreja, ocupa um cume que se encontra entre o vale do Arconce, afluente do Loire, e a planície aluvial do Loire, muito fértil. Essa situação favorável fez da região um lugar habitado desde a Antiguidade, e é possível que, antes, ali tenha existido um local de culto anterior à vila romana que lhe nomeou.
[1] Optamos aqui por limitar nossas observações aos séculos XI e XII